segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Cildo, por Moacir dos Anjos

Direção: Gustavo Moura Produção: Matizar Filmes Brasil, 2009, 78 minutos

Diante da pouca documentação existente sobre arte contemporânea brasileira, o lançamento de Cildo, filme de Gustavo Moura sobre a obra de Cildo Meireles é algo a ser celebrado. O filme mescla depoimentos de Meireles com imagens de algumas de suas principais obras, vistas em preparação ou já prontas em exposições no Museu Vale, em Vila Velha (ES), na Tate Modern, em Londres (Reino Unido), e no Instituto Cultural Inhotim, em Brumadinho (MG) – onde instalações como Através, Glove trotter e Desvio para o vermelho são exibidas em caráter permanente. Embora obviamente não substituam o contato com os trabalhos, essas falas e registros visuais têm o poder de argumentar, mesmo para quem pouco ou nada conhece da trajetória do artista, as razões dele ser hoje considerado, por críticos e curadores de diversas gerações e procedências, um dos mais importantes artistas brasileiros em atividade. Não é seu caráter documental, contudo, que mais singulariza o filme, mas sim sua capacidade de adequar o seu ritmo ao curso e à lógica da obra de Meireles.

Ainda no início de Cildo, o artista compara sua idéia de arte à ação do malabarista, que precisa fazer três objetos (os malabares) caberem em um terrítorio adequado para apenas dois deles (as mãos). A única forma de conciliar esse descompasso, diz Meireles, é através do conceito de tempo, o qual permite que um dos malabares esteja sempre suspenso no ar, em rodízio constante entre duas mãos sempre ocupadas. E é a exploração crítica e contínua da relação entre espaço e tempo, simultaneamente em suas dimensões física e política, que orienta parte importante da trajetória do artista, tal como evidenciado em instalações como Babel e Marulho, destacadas no filme. Nelas Meireles assinala a inadequação da idéia usual de pertencimento para a compreensão da dinâmica do mundo contemporâneo e o conseqüente rompimento da associação imediata e exclusiva entre lugar, cultura e identidade. São trabalhos que tornam ainda clara – reverberando algo presente em vários outros –, a importância que o artista concede às relações sinestésicas entre os campos do olhar e da escuta para o desmanche de ideias rígidas de localização espaciotemporal.

Esses aspectos da obra de Meireles podem ser também formulados em termos da professada rejeição, frequentemente assinalada em sua trajetória, a modos de pensar o mundo (no campo do indíviduo ou das práticas coletivas) a partir de conceitos duais, cujos sinais opostos se excluam. O que seus trabalhos afirmam de fato, é justo o que não cabe em pólos extremos e que se situa no lugar impreciso do que sequer se sabe nomear ao certo. Tudo o que está aquém ou além do esperado, ou do que se quer como correto ou errado. O que sua obra talvez enuncie, portanto, é o papel da arte onde a fala falta e o discurso falha. A afirmação de uma arte que ignora consensos ou que deles escapa, que cria frestas em convenções e que reinventa o que já se pensava dado; ou que torna visível o que não se enxergava. Uma arte que embaralha distinções claras, que é lenta e inconclusa, e que traça caminhos sinuosos sem fim ou desígnios antecipados.
Uma arte contígua à vida.

Respeitando a centralidade desses conceitos na obra de Meireles, Cildo recusa o passo apressado e a edição fragmentada de tantos documentários sobre arte contemporânea, rendendo-se à temporalidade estendida e à consequente exploração no espaço que cada trabalho requer para capturar os sentidos do público. Mais do que representar a obra do artista, ele a testemunha, acatando a impossibilidade de traduzi-la, de modo pleno, em termos fílmicos. Entre o desejo de aproximação máxima ao objeto escolhido e o reconhecimento de que certa distância deve ser mantida, Cildo encontra um tom que emula a preferência pelo interstício que já está dada em muitos trabalhos de Meireles. Também tem destaque no filme, ainda que nunca explicitada verbalmente, a ética que rege a obra do artista, na qual o que vale e o que fica é mais o trabalho feito do que mesmo quem o cria. Não por acaso, na cena final de Cildo, em meio a montagem de uma exposição sua, Meireles recusa a cadeira deixada vazia para ele no enquadramento central da câmera, preferindo sentar-se em outra, distante dali.