domingo, 3 de julho de 2011

Guy Debord: Muito além do cinema

Guy Debord:
Muito além do cinema
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Por Luiz Rosemberg Filho e Sindoval Aguiar, do Rio de Janeiro

Alucinados pela tirania das imagens, submissos à tirania da mídia, viramos uma multidão desinformada, submissa e aquartelada.

Guy Debord
“Burocracia/ Prisão econômica/ E campo de provas/ Da burguesia/ Onde se tritura o sujeito/ E depois rumina/ Como certeza da ruína/ E cansada de tantas vitórias/ Apenas espera/ Uma nova fase do capitalismo/ Além dessa do triturar/ Pelo olhar/ Que a sociedade do espetáculo/ Esmera de passagem/ Pela abundância da imagem/ E sem a necessidade/ Do ruminar.”
Sindoval Aguiar em “Tantas Vitórias”


Queiramos ou não, o espetáculo pelo espetáculo, muito comum nos dias de hoje, é a concretização de fascismos. O eterno ex-defunto volta a enquadrar-se na retórica de implicações perigosas, como a burocracia. Ora, o que são as imagens-flashes da política, das religiões na TV, das guerras, da publicidade e mesmo do fardo das novelas? São, sim, artifícios simbólicos de dominação pela via do espetáculo. O ressuscitar da besta fertilizando “novos” horrores. Do velho conservadorismo dos discursos que nada dizem a um naturalismo eternizador como proposta de poder. Poder ser para a morte do saber. Ora, por que não se ressalta nunca o caráter repressivo do espetáculo? Qual a trajetória da sua onipotência ligada à religião, ao cinema e à TV? Espaços onde todos são vendidos como “artistas”, nessa feia região do nada. E no baixo jogo das dissimulações, o fingimento como máscara de uma sinceridade duvidosa.

Nunca, em tempo algum, se usou tanto o espaço dos crimes como ilustração “positiva” repressiva do horror. O bufão apatetado e carola na TV grita ter Deus no coração. Nada mais dissimulativo no baixo uso do fascismo como arma de intimidação, pois o ser humano virou objeto de uso descartável que, ao viver entre injustiças e autoridades, não passa de um fantoche sem expressão humana alguma. Só serve para produzir, consumir, vomitar e votar no cinismo político do nosso tempo. Estamos todos impregnados da presença da miséria-espetáculo como forma de diluição permanente. O político, o religioso, o comunicador e o burocrata são as “razões” teóricas, através das quais funciona a propagação de fascismos partidários. Ontem o nazi-fascismo. Hoje a televisão e seus anunciantes que nos fazem comprar seja lá o que for, desde que seja lixo!

O espetáculo da produção só quer contemplação, e não um mínimo de transformação. Temem o enfraquecimento da hipocrisia como arte empobrecida. Daí esse culto exasperante ao “vilão bem-intencionado” da política à religião na TV. Usa-se o espectador idiotizado para aceitação do que seja, e trabalhado 24 horas para não pensar, produzir, consumir e se sentir “feliz” por um falso discurso produzido e fechado na melancolia de um imenso vazio. Vazio, enfim, que responde pela sua mudez. Cabe ao “ator” do espetáculo mentir mais e satisfazer-se com sua morte agonizante, mas que justificará seu sucesso e sua vaidade de idiota, identificado-o com a missa grossa do capital.

O defunto pensa que sabe o que está fazendo, e seu desafio é não ser demasiadamente o que é: um idiota a serviço do fascismo como espetáculo. A máquina sabe bem como usar a todos, imputando-nos esquecimentos, obrigações, silêncios e perversidades. “Pensando” sempre em voz alta, diz: -Crucificai-o pois já está morto e não sabe! O catequista-religioso sente-se vitorioso. A atriz-tecnicollor-digital se realiza em sua marcha para o sucesso a qualquer preço. O político, ainda na era colonial, não se importa de se embrenhar na corrupção e se sentir um Deus socializador do óbvio. Inofensivos, os roteiristas das novelas ou do cinemão aplaudem por se sentirem vivendo no apogeu da eterna glorificação de Hollywood.


A Confederação dos Burocratas do Brasil acompanha esse afã com uma dissertação pomposa em defesa do dinheiro público para nossas múmias tropicais. É preciso valorizar nosso surto capitalista de nos devorarmos vivos, na nossa Wall Street de Pindamonhangaba: todas as repartições públicas que lidam com a Cultura! Sempre evasivo, o Bonequinho aplaude e fica de quatro. Mas é o que o professorado infantil de “Malhação” entende como responsabilidade dos novos fantoches descolloridos: uma especialização comum do óbvio, sem improvisação alguma. E, por extensão, para os novos alunos virarem cartões-bostais, extasiando-se com as reminiscências da Casa Grande. O pictórico do espetáculo jorra da cacetada da sua reestreia na próxima novelinha das 7. Do lixo para o lixo, sempre no lixo oficial!

Ora, como pode a televisão aberta e privada ser uma espécie de monopólio da comunicação? E já agora transformando o cinema no novelão das 9! Claro que as forças obscuras do passado estão lá dentro inventando que glorificam o cinema. Mas que tipo de cinema? No seu teatrinho de marionetes intensificam o espírito-yankee burocrático empresarial que aprenderam com a ditadura, na administração infindável de seus muitos horrores. Como já estão velhos (talvez mortos!), volta e meia os encontramos rotos internamente em hospitais, enterros e cemitérios. Mas alguns ainda gostam de ouvir que foram, no passado... cineastas! “Cada qual com o seu quadrado” na valorização de mão-única do sucesso do patrão. Ontem a ditadura. Hoje a TV. Realizam-se como porta-vozes alfabetizados pelo idiotismo televisivo à disposição do espetáculo.

São os Xuxos da “nova” era da obviedade, sedimentados no eterno poder de mandar e humilhar. Único compromisso imposto na ditadura e na TV, tenazes na sua projeção simbólica do passo-de-ganso que o regime militar desenvolveu como técnica dos discursos religiosos, e no virtuosismo da burocracia, ao servir às multinacionais da informação, e no que eles entendem como cinema. Ora, raros são os filmes como O Leopardo, Dr. Fantástico, Fanny e Alexander, Blow-Up e Macunaíma, que subvertem o sentido bélico e alienante do espetáculo em seu desenvolvimento crítico.

Hollywood criou um modelo burro e autoritário para o mundo, impondo forças produtivas reacionárias capazes de legitimar hierarquias, copistas, hegemonias, privilégios, esquizofrenia, imobilismos, burocracias e fascismos. Sob sua jurisdição, o que importa é enraizarem-se como movimento “civilizatório” potencializado pelo capital. Basta que se vejam no mundo os “filmes” que alardeiam grandes sucessos de bilheteria: inconsequentes numa velada (ou não), reconsolidação de fascismos como um princípio fundamental repressivo. O grande público é tratado para só ser pagante e alienado à luz do espetáculo conservador. Mas... é onde a “sociedade burocrática de consumo” vai gozar: numa rejeição mesquinha ao saber e a uma politização criativa e poética da arte cinematográfica.

Chegamos, então, ao delicado cinema de Guy Debord. Seus filmes se definem como uma tese central, a da abdicação da verdade, que forma o espetáculo que a sociedade assumiu e quer nos impor. Ou melhor, nos impõe como realidade. E da qual não conseguimos escapar porque ela está presente em nossas vidas como um criminoso à nossa espera, em emboscada. Mas Debord, em seus filmes, tem sua estratégia sóbria, delicada e contundente, a do saber como terrorismo cultural, e cujo torpedo ele carrega em suas ideias – incapazes de serem interceptadas por qualquer escudo antimíssil. E que, quando lançado, não destrói, instrui. Desdobra e desconstrói, compõe e recompõe através de fragmentos do real que ele parafraseia, pausada e musicalmente, tornando o campo de batalhas um local de encontro, substituindo o monólogo da morte pelo diálogo com a vida. Esta coisa única, nossa e insubstituível. A linguagem extra-imagem de Debord nos aproxima ainda mais de Godard. Consciência sem ambivalências!

Assim são os filmes de Debord, um encontro inesperado entre duas forças antagônicas, não ambivalentes, mas possíveis de uma aproximação porque da realidade ninguém escapa. O que Debord sabia e de que não fugia! Porque, para ele, a realidade já era a modernidade com suas inúmeras contradições, tendo, ao centro, a comandá-la, o terror do capitalismo e do controle dos meios de produção, superada aquela fase de indecisão da década de 60 em que guerras eram ativadas como superação de suas crises e manutenção de sua eterna e constante produção de lucros e mortes.

Do outro lado, para o encontro, estava esse fantástico e impressionante cinema de Debord. O de um experimento muito além do cinema, porque o que ele incorpora é justamente a análise da imagem pela decomposição em incomparáveis tentativas de diálogo com elas (que só sabem monologar pela concepção impositiva de que são formadas). E, aos poucos, pela beleza do encontro, as imagens acabam aceitando a abdicação de suas verdades. Com a relação entre imagens e linguagens se definindo pela abstração daquelas e a supremacia e a presença de uma exposição lúcida e convincente da linguagem sobre o que aquelas imagens estavam representando. Ali onde o espetáculo que elas significavam era a forma mais perversa de nossa fragmentação e separação de nós mesmos. Porque tudo o que não temos e, nem está em nós, está presente na forma de espetáculo.

Como uma novela, por exemplo. Tudo está lá: luxo, lixo, traição, riqueza, violência, sonhos, contradições, menos o ser humano! E somos tragados, sugados e trucidados. E a tudo isso vamos nos acostumando como divertimento, controle e submissão psicológica de base política em todos os níveis: econômicos, religiosos e culturais. Imagens que nos são impostas a partir de necessidades que temos delas como oferenda e culto. O mais cruel é que a própria sociedade não vive mais sem as necessidades dessas imagens. Produzidas e administradas em rede, onde todos temos que cair. E onde Debord se recusa a ser peixe frito!

Enquanto as imagens monologam, Debord impõe o diálogo com a serenidade e a desconstrução do próprio confronto. Oferece também tudo aquilo que o marxismo nos apresenta para mudar o mundo, além da filosofia, a luta de classes, a universalização do conhecimento e das coisas mais íntimas de nosso dia a dia – a realidade – coisas tão próximas e que nos arrastam.

Debord, um cineasta e filósofo definitivo para o nosso tempo. Seu trabalho foi deslocar o sentido antropológico a que o ser humano se deixou levar pelo espetáculo, tornando a realidade uma coisa frágil, comum, sem poder e da qual podemos fazer parte e ser iguais; o que ele nega numa confirmação histórica e dialética, de que o espetáculo reduz tudo à insignificância, enquanto a dominação pelos meios e as imagens se estrutura e extrapola, estrangulando nossa existência.

Debord utiliza o cinema como uma significação da arte para transformar a complexidade de uma totalidade em entendimentos. O que a realidade não faz e nem permite. Para que cheguemos ao entendimento de nossa individualidade, Debord decompõe o sentido do espetáculo em que a sociedade se transformou. O cinema então passa a recuperar a importância que o espetáculo lhe tirou, recuperando sua função social, enquanto os seres humanos são transformados em coisas e objetos. Os filmes de Debord são a síntese do materialismo histórico, de uma dialética aplicada à realidade. Para sua transformação além de uma situação. Um recurso de conhecimento avançado que Godard utiliza em seu moderno cinema, fazendo de cada espectador um ser social. E de cada realidade um lugar onde ele se forma.

11/2/2011

Fonte: ViaPolítica/Os autores

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