quarta-feira, 30 de junho de 2010

A Potência de Existir - Michel Onfray, 2009

Antes de mais, talvez convenha sublinhar a vitalidade da prática filosófica na actualidade. Pensadores como Peter Singer (n. 1946), Peter Sloterdijk (n. 1947), Slavoj Zizek (n. 1949), Michel Onfray (n. 1959), entre outros, têm conseguido, cada um à sua maneira, ressuscitar a dimensão polémica da filosofia, monstro durante demasiado tempo adormecido na cama reflexiva e abstraccionista que manteve os filósofos de costas voltadas para os problemas da vida concreta. As propostas são diversificadas e logram entusiasmar os leitores com uma linguagem já não tão fechada sobre si própria, mas preocupada com a urgência de uma inteligibilidade que, não simplificando a natureza complexa do pensamento, o torna acessível aos leitores menos predispostos para o hermetismo.



O exemplo de Michel Onfray é particularmente entusiasmante, atendendo ao facto do autor ser avesso a uma filosofia construída em cisão com a vida, ou seja, contrário a todo o sistema filosófico erigido no plano do ideal sem um acompanhamento concreto e existencial daquele que o constrói. «Nunca como hoje foi tão urgente uma filosofia do corpo existencial» (p. 68), diz; e acrescenta: «A prova do filósofo? A sua vida. Uma obra escrita sem a vida filosófica que a acompanha não vale a pena nem por um segundo» (p. 73). Aqui se nota a ruptura com os apologistas de uma separação das águas teórica e prática, como se uma pudesse justificar-se sem a outra. Quem estiver familiarizado com a obra de Onfray, constatará o recurso frequente ao exemplo pessoal, ao dado biográfico, à pequena história, até mesmo à anedota enquanto síntese teatral do pensamento e da teoria.



A Potência de Existir – Manifesto Hedonista (Campo da Comunicação, Fevereiro de 2009) abre precisamente com uma narrativa autobiográfica onde o filósofo francês dá conta da relação problemática mantida com a sua mãe e da experiência humilhante e opressora passada no orfanato de Giel. O exemplo dos antigos cínicos é levado à letra, mas liberto das impurezas de uma historiografia que pretendeu fixar a atitude cínica confundindo-a com mera ironia, anedota, provocação. Também Onfray desmonta a realidade denunciando-a, procurando mostrá-la para lá das fábulas que geralmente a disfarçam, desvelando os sonhos do idealismo enquanto aponta as fissuras do discurso oficial. Que pegue numa figura caluniada pela historiografia dominante, nomeadamente Epicuro, propondo uma contra-história da filosofia, apenas demonstra uma arguta consciência crítica cujo fim será a construção de um sistema hedonista.


O subtítulo deste livro não deixa margens para dúvidas. Trata-se de uma síntese do trabalho realizado noutras obras, algumas das quais à disposição do público português. Assim, nas várias partes que compõem este manifesto, o filósofo percorre as teses de uma moral estética anteriormente desenvolvida em A Escultura do Eu (Quarteto, Julho de 2003), a erótica solar explanada na Teoria do Corpo Amoroso (Temas e Debates, Setembro de 2001), o tratado de resistência e de insubmissão que já conhecíamos de A Política do Rebelde (Instituto Piaget, 1999) ou a física da metafísica levada a cabo no Tratado de Ateologia (Edições Asa, Setembro de 2007).



As sinopses são clarificadoras de um projecto assente numa crítica feroz à herança moral judaico-cristã. Reduz-se Deus a uma resposta às fraquezas humanas, gerada pelo medo do homem perante si próprio, o mesmo medo que o afastou do corpo, dos prazeres do corpo, sacrificando-o, adestrando-o a ponto de o castrar nas suas potencialidades e de o desviar do espanto concentrado nos postulados da alma. Realizado o diagnóstico, parte-se para o estabelecimento dos princípios que deverão sustentar uma ética dinâmica. O objectivo consiste em abulir a miséria sexual instalada pelo pensamento cristão e abrir caminho para uma libertinagem pós-moderna, inalienável de um contrato hedonista onde o «bom» e o «mau» surjam não de uma atitude impositiva mas de um diálogo permanente entre o «eu» e o «outro».


No hedonismo onfrayano a ética não é separável da erótica, faz-se em diálogo com a metafísica, à política corresponde uma estética, a estética resulta de uma epistemologia, isto é, todas as dimensões do pensamento estão interligadas por um só propósito: encontrar uma saída do niilismo actual, não estar morto durante a vida. A revalorização do corpo seria insustentável sem uma estética que não denunciasse as balelas da arte inconsistente, falsamente profunda, justificando-se permanentemente a partir dos pressupostos da intransmissibilidade e do indizível. Onfray defende uma repolitização da arte, que nada deve a uma arte política, mas sim à «introdução de um conteúdo capaz de produzir um agir comunicacional».



«O movimento para o nada foi defeituoso; aquele que nos afasta dele, restabelecendo os antigos valores, também o é. Nem o zen nem o Kitsch. O quê, então? O gosto pelo real e pela matéria do mundo, a vontade de imanência e do mundano, a paixão pela textura das coisas, pela suavidade dos materiais, pela coloração das substâncias» (p. 163-164). Contra a transcendência, pela imanência, a audácia de uma filosofia do corpo existencial, uma bioética libertária, uma política do prazer consciente das suas resistências e dos seus anti-corpos. Nada de utopias universalizantes. Irrealizável no mundo, uma filosofia assim pode concretizar-se enquanto guia prático na vida dos indivíduos que, lá está, conscientes de uma morte inevitável a enfrentem em vida com os dentes arreganhados, à mostra.

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